Almir Antonio Fabricio de Carvalho1
1 INTRODUÇÃO
A Justiça do Trabalho ocupa um lugar singular no sistema jurídico brasileiro. Desde sua criação, foi concebida como um instrumento de promoção da justiça social, voltado à proteção da parte hipossuficiente nas relações laborais. Em sua essência, representa a tentativa do Estado de equilibrar forças historicamente desiguais, garantindo ao trabalhador não apenas o acesso à justiça, mas também a efetividade de seus direitos fundamentais. É nesse cenário que a advocacia trabalhista se insere como agente indispensável, responsável por dar voz àqueles que, muitas vezes, não têm meios de se fazer ouvir.
Contudo, o que se observa no cotidiano forense é uma dissonância crescente entre esse ideal de justiça social e a realidade vivida pelos advogados que militam na seara trabalhista. Há uma cultura institucional que, por repetição e acomodação, naturalizou condutas que violam prerrogativas profissionais. Mais grave ainda é o fato de que a própria advocacia, por razões diversas — que vão desde o receio de represálias até a precarização da profissão — acabou por aceitar esse cenário como parte do funcionamento normal da Justiça do Trabalho. O silêncio diante dessas violações não é apenas sintoma de fragilidade institucional, mas também um obstáculo à própria realização da justiça.
Como bem pontua José Alberto Simonetti (2022), “as prerrogativas não são privilégios do advogado, mas garantias do cidadão de que terá uma defesa técnica plena e independente”. Quando o advogado é impedido de se manifestar, de gravar uma audiência ou de atuar com liberdade, não é apenas sua dignidade profissional que está em jogo — é o próprio direito de defesa do trabalhador que está sendo comprometido.
Diante desse cenário de distanciamento entre o ideal institucional da Justiça do Trabalho e a realidade vivida pela advocacia trabalhista, torna-se essencial compreender os fundamentos que sustentam a atuação do advogado como agente indispensável à efetivação da justiça social. A seguir, será analisado o papel da advocacia trabalhista na construção desse ideal, bem como os desafios enfrentados para que sua atuação seja respeitada, valorizada e protegida no ambiente forense
2 O IDEAL DA JUSTIÇA SOCIAL E O PAPEL DA ADVOCACIA TRABALHISTA
A Constituição Federal de 1988 consagrou a valorização do trabalho como um dos fundamentos da ordem social brasileira. A Justiça do Trabalho, nesse contexto, foi concebida como instrumento de efetivação dos direitos sociais, especialmente daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica. No entanto, sua missão vai além da proteção unilateral do trabalhador: ela deve garantir a legalidade, a segurança jurídica e o equilíbrio entre os polos da relação laboral, assegurando que o processo seja conduzido com respeito à ampla defesa, ao contraditório e à atuação técnica dos advogados que representam ambas as partes.
A advocacia trabalhista, nesse cenário, desempenha papel essencial na construção da justiça social. Seja na defesa dos direitos do trabalhador, seja na representação dos interesses legítimos das empresas, o advogado é o responsável por assegurar que o processo judicial reflita os princípios constitucionais que regem o Estado Democrático de Direito. A atuação profissional não se limita à petição inicial ou à contestação: ela se estende à sustentação oral, à condução da audiência, à negociação de acordos e à vigilância constante da legalidade dos atos processuais.
É importante destacar que as violações às prerrogativas da advocacia não atingem apenas os profissionais que representam trabalhadores. Advogados de empresas também enfrentam condutas que comprometem sua atuação técnica, como interrupções indevidas, restrições à manifestação oral, exigências ilegais de juntada de documentos internos, e até mesmo tentativas de desqualificação de sua função no processo. A cultura institucional que naturaliza essas práticas não distingue o polo da relação jurídica — ela atinge a advocacia como um todo, fragilizando o papel do profissional e comprometendo a integridade da jurisdição.
Como bem pontua Felipe Santa Cruz (2021), “o pleno desempenho desse mister é do interesse de toda a sociedade, razão por que a lei assegura aos advogados um amplo conjunto de garantias destinadas à salvaguarda de seu ofício”. A afirmação reforça que as prerrogativas da advocacia não são privilégios individuais, mas instrumentos de proteção da legalidade e da cidadania, essenciais para que o processo judicial seja justo, equilibrado e legítimo.
A Justiça do Trabalho, ao permitir ou tolerar condutas que desrespeitam a atuação profissional, distancia-se de seu ideal fundacional. A justiça social não se realiza apenas pela proteção do hipossuficiente, mas pela garantia de um processo justo, equilibrado e respeitoso para todos os envolvidos. A advocacia trabalhista, em todas as suas vertentes, deve ser reconhecida como função essencial à administração da justiça, e suas prerrogativas devem ser respeitadas como pilares da democracia processual
3 A CULTURA DA OMISSÃO E A NATURALIZAÇÃO DAS VIOLAÇÕES
Diversas práticas, quando observadas isoladamente, podem parecer meramente administrativas ou fruto da rotina forense. No entanto, quando reiteradas e aceitas sem contestação por parte da advocacia, configuram uma cultura institucional que enfraquece a advocacia e compromete a integridade do processo judicial.
A condução autoritária das audiências é uma das práticas mais recorrentes. O cerceamento do direito de fala, a interrupção excessiva da manifestação do advogado, a limitação da defesa técnica do cliente e, em alguns casos, a completa obstrução da atuação profissional são condutas que, embora não formalmente admitidas, foram naturalizadas no cotidiano forense. A ausência de decoro e o desprezo pelos argumentos apresentados, muitas vezes tratados com desdém ou ironia, revelam um ambiente institucional que ignora o papel essencial da advocacia na construção da justiça.
Outro ponto sensível que merece atenção é a prática recorrente de coação para realização de acordos, especialmente nas audiências trabalhistas. O convencimento coercitivo, muitas vezes disfarçado sob o manto da “cultura da conciliação”, tem se tornado uma rotina institucionalizada. Magistrados, pressionados por metas de produtividade impostas pelo próprio sistema judicial — como indicadores de conciliação e homologações — acabam por secundarizar a função jurisdicional e priorizar a formalização de acordos, mesmo quando estes não refletem a realidade dos direitos pleiteados ou sequer foram livremente construídos pelas partes.
Essa pressão estrutural, oriunda de políticas de gestão judiciária, transforma o espaço da audiência em um ambiente de negociação forçada, onde o advogado é instado a convencer seu cliente a aceitar propostas que não correspondem à pretensão jurídica legítima. Em muitos casos, há uma valorização antecipada da petição inicial ou da contestação, com comentários judiciais que induzem o profissional a rever sua estratégia, fragilizando a autonomia técnica da defesa e comprometendo a liberdade de convencimento jurídico.
Esse fenômeno não pode ser dissociado das metas institucionais estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), que impõem aos tribunais e magistrados indicadores de desempenho vinculados à conciliação e à produtividade. A Meta 3 da Justiça do Trabalho, por exemplo, estabelece como objetivo o aumento do índice de conciliação em relação ao biênio anterior, convertendo um instrumento voluntário de pacificação em critério de avaliação funcional. Embora a conciliação seja um valor processual legítimo, sua transformação em meta compulsória gera distorções graves, convertendo o ato jurisdicional em instrumento de negociação forçada.
A doutrina já vem alertando para os riscos dessa prática. Willian Gomes e Semíramis Macedo (2020), afirmam que “limitar, obstaculizar ou impedir o profissional de exercer suas atividades como demanda a lei é prejudicial não apenas à advocacia, mas ao próprio Estado Democrático de Direito”. A conciliação, embora seja um valor processual importante, não pode se sobrepor à função jurisdicional de garantir direitos. Quando o acordo é resultado de pressão institucional e não de vontade livre, ele deixa de ser instrumento de pacificação e passa a ser mecanismo de deslegitimação da justiça.
Além disso, essa lógica de metas e produtividade ignora a complexidade das relações trabalhistas e a vulnerabilidade dos trabalhadores, que muitas vezes aceitam acordos por medo, necessidade ou desconhecimento, sem que haja uma atuação técnica plena por parte de seus representantes. O advogado, ao ser pressionado a conduzir o cliente ao acordo, vê sua função essencial esvaziada, e suas prerrogativas, relativizadas.
Tiago Cristiano Campos (2024), reforça que “o advogado se revela essencial para a justiça, e, portanto, as prerrogativas são igualmente fundamentais para garantir ao advogado a capacidade de exercer suas funções de forma eficaz e digna”. É preciso reafirmar que a conciliação deve ser um caminho legítimo, mas jamais imposto. A atuação do magistrado deve ser orientada pela imparcialidade e pela garantia da legalidade, e não pela busca de números que satisfaçam indicadores administrativos. A advocacia trabalhista, por sua vez, deve resistir à naturalização dessa prática, denunciando e enfrentando qualquer forma de coação institucional que comprometa a defesa técnica e a dignidade da jurisdição.
Da mesma forma, a violação do direito à gravação de audiências é outro exemplo de prática naturalizada. O direito à gravação de audiências por qualquer das partes está expressamente previsto no artigo 367, §§ 5º e 6º do Código de Processo Civil. O § 5º estabelece que “a audiência poderá ser integralmente gravada em imagem e em áudio, em meio digital ou analógico, desde que assegure o rápido acesso das partes e dos órgãos julgadores, observada a legislação específica”. Já o § 6º complementa, afirmando que “a gravação a que se refere o § 5º também pode ser realizada diretamente por qualquer das partes, independentemente de autorização judicial”.
Essa previsão legal é clara: não há necessidade de autorização judicial para que o advogado realize a gravação da audiência, desde que se trate de ato público e respeitados os parâmetros legais. Trata-se de uma garantia processual que reforça os princípios da publicidade, da ampla defesa e da transparência dos atos judiciais.
Apesar disso, é comum que magistrados imponham restrições indevidas, como a exigência de comunicação prévia ou a proibição expressa da gravação, sob pena de sanção. Tais condutas, além de ilegais, comprometem a produção de prova em casos de abuso ou desrespeito, e violam diretamente o direito da parte à defesa técnica plena por meio de seu advogado.
A gravação de audiências, portanto, não é uma faculdade condicionada à vontade do juiz, mas um direito processual assegurado por lei. Impedir esse registro configura uma prática incompatível com o Estado Democrático de Direito e com os princípios que regem o processo civil contemporâneo.
Cezar Britto (2015), ex-presidente da OAB, é enfático ao afirmar que “a busca da inviolabilidade profissional apenas possui razão de ser — e objetiva assegurar — a defesa do cidadão, que deve ser altiva, sem peias, é dizer, livre”. A tentativa de impedir a gravação de audiências é, portanto, uma afronta direta à liberdade da atuação profissional e à proteção da cidadania.
Por fim, a obrigatoriedade de juntada de contrato de honorários, exigida por alguns magistrados como condição para liberação de valores ou homologação de acordos, representa uma afronta direta à autonomia da advocacia e à confidencialidade da relação contratual entre advogado e cliente. Tal exigência não encontra respaldo legal e expõe o profissional a constrangimentos indevidos, além de comprometer a privacidade das partes envolvidas.
Essas práticas, embora não sejam universais, ocorrem com frequência suficiente para justificar uma análise crítica e institucional. É necessário que a advocacia identifique, denuncie e enfrente essas condutas, não apenas como defesa corporativa, mas como proteção da legalidade e da cidadania. A cultura da omissão só será superada com coragem institucional e compromisso ético com a função pública da advocacia.
4 O IMPACTO NA LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A cultura da omissão não afeta apenas os advogados. Ela compromete a própria Justiça do Trabalho, que perde sua legitimidade ao permitir práticas que ferem o devido processo legal. A paridade de armas é condição essencial para que o processo seja justo. Quando o advogado é silenciado, desrespeitado ou tratado como figura secundária, a parte também perde. A defesa técnica é prejudicada, o contraditório é enfraquecido e a decisão judicial corre o risco de se tornar menos justa.
Além disso, a naturalização dessas condutas alimenta discursos de descredibilização institucional. A Justiça do Trabalho, que deveria ser vista como espaço de promoção da cidadania, passa a ser percebida como ambiente hostil à advocacia, o que abre espaço para propostas de redução desse ramo especializado do Judiciário. Defender as prerrogativas da advocacia trabalhista é, portanto, defender a própria existência da Justiça do Trabalho como instrumento de justiça social.
5 A URGÊNCIA DA REAÇÃO INSTITUCIONAL
A reversão desse cenário exige uma atuação firme e articulada das instituições representativas da advocacia. A Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de suas comissões de prerrogativas, deve assumir um papel proativo na construção de uma cultura de respeito à advocacia. Isso passa pela formação contínua dos profissionais, pela presença institucional nos fóruns e audiências, pelo diálogo com magistrados e servidores e pela promoção de campanhas públicas que valorizem o papel da advocacia trabalhista na efetivação da justiça social.
Zênia Cernov (2021), ao tratar da natureza das prerrogativas, destaca que “embora pareçam, numa primeira leitura, serem direitos voltados ao profissional, em verdade, constituem instrumentos de proteção da própria cidadania”. Mais do que proteger o advogado, essas ações protegem o próprio sistema de justiça. A defesa das prerrogativas é uma defesa da legalidade, da cidadania e da democracia.
6 CONCLUSÃO
A Justiça do Trabalho, concebida como instrumento de promoção da justiça social, não pode se limitar à proteção do trabalhador em abstrato. Ela deve ser também um espaço de respeito àqueles que viabilizam essa proteção — especialmente à advocacia trabalhista, que atua na linha de frente da defesa dos direitos sociais. A persistência de práticas que violam prerrogativas profissionais, ainda que disfarçadas de rotina institucional, compromete não apenas o exercício da advocacia, mas a própria legitimidade do sistema de justiça.
A naturalização dessas condutas — como a condução autoritária de audiências, a coação para acordos, a restrição ao direito de gravação e a exigência indevida de juntada de honorários — revela uma cultura institucional que precisa ser urgentemente enfrentada. O silêncio da advocacia diante dessas violações, seja por receio, por desgaste ou por conformismo, contribui para a perpetuação de um modelo que enfraquece a função jurisdicional e deslegitima o papel do advogado como agente essencial à administração da justiça.
Como bem pontua Zênia Cernov (2025), as prerrogativas da advocacia não são meros instrumentos corporativos, mas garantias da cidadania. Cezar Britto (2015) reforça que a inviolabilidade da atuação profissional é condição para que o cidadão tenha uma defesa altiva e livre. E o Código de Processo Civil, ao permitir expressamente a gravação de audiências por qualquer das partes, sem autorização judicial, reafirma o compromisso com a transparência e com o contraditório.
A superação desse cenário exige mais do que denúncias pontuais. É preciso uma mobilização institucional contínua, liderada pela Ordem dos Advogados do Brasil, com ações de formação, fiscalização, diálogo e enfrentamento. A advocacia trabalhista deve se reconhecer como protagonista na construção da justiça social e assumir o compromisso de não mais tolerar práticas que a desrespeitam ou a silenciam.
Romper com a cultura da omissão é um ato de coragem coletiva. É reafirmar que a Justiça do Trabalho só será verdadeiramente justa quando for também justa com seus operadores. E que a advocacia, ao defender suas prerrogativas, não está defendendo privilégios, mas sim a integridade do processo, a dignidade da profissão e, sobretudo, o direito do cidadão de ser representado com liberdade, respeito e altivez.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRITTO, Cezar. A inviolabilidade do direito de defesa. Brasília: OAB Nacional, 2015.
CAMPOS, Tiago Cristiano. Prerrogativas e sua efetividade na proteção dos direitos dos advogados no Brasil. JusBrasil, 2024. Disponível em JusBrasil.
CERNOV, Zênia. Prerrogativas da advocacia: garantias da cidadania. Consultor Jurídico, São Paulo, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br. Acesso em: 10 set. 2025.
GOMES, Willian; MACEDO, Semíramis Regina Moreira de Carvalho. A preservação das prerrogativas dos advogados como garantia do cidadão de acesso à justiça. Revista Brasileira de Direito Processual, v. 26, n. 2, p. 45–62, 2020.
SANTA CRUZ, Felipe. A função social da advocacia e a defesa das prerrogativas. Revista da OAB Nacional, Brasília, v. 18, n. 1, p. 11–19, 2021.
SIMONETTI, José Alberto. As prerrogativas da advocacia trabalhadora. Revista Justiça & Cidadania, Rio de Janeiro, n. 241, p. 8–12, 2022.
SENNA MARTINS, Antônio Eduardo. Prerrogativas da advocacia: fundamentos e desafios. JusBrasil, São Paulo, 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br. Acesso em: 10 set. 2025.
- Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário pela EMATRA IX. Experto en Relaciones Laborales pela Universidade de Castilla-La Mancha/Espanha. Bacharel em Direito pela Universidade Positivo. Diretor do Núcleo de Direito do Trabalho da Comissão de Defesa das Prerrogativas Profissionais da OAB/PR – gestão 2025/2027. almircarvalho@plcv.adv.br. ID Lattes: 4300070753665141 – http://lattes.cnpq.br/4300070753665141 ↩︎


