Vinicius A. Mesquita.
Advogado. Diretor do Núcleo de Direito Cível da Comissão de Defesa das Prerrogativas da OAB/PR (2025–2027).
1. Introdução
Vivemos uma era em que a informação é veloz, acessível e, sobretudo, incontornável.
Se por um lado isso empodera a cidadania, por outro, expõe uma realidade inquietante: as violações às prerrogativas da advocacia não são episódicas, são estruturais, recorrentes e, muitas vezes, institucionalizadas.
Seja nas portas dos fóruns, nas salas de audiência, nas repartições públicas ou nos balcões dos cartórios, os relatos de desrespeito ao exercício profissional da advocacia são expostos recorrentemente.
A Ordem dos Advogados do Brasil, como é sabido, adota múltiplas frentes de atuação, com representações administrativas, desagravos públicos, intervenções como amicus curiae, expedição de ofícios, formulação de pedidos de providências e, mais recentemente, a criação do Registro Nacional de Violadores de Prerrogativas[1] (RNVP), instrumento que já se revela fundamental para mapear infratores contumazes.
Contudo, surge uma inquietação necessária: por que a responsabilização civil, financeira, efetiva, pedagógica dos agentes violadores e do próprio Estado não tem sido adotada como política institucional?
Este artigo propõe uma inflexão provocativa.
Por que não transformamos a Ação Civil Pública no que os norte-americanos fazem com suas Action Rights?
2. O Modelo Americano.
Nos Estados Unidos, a defesa das prerrogativas profissionais se ancora em bases sólidas da própria Constituição.
Através da Civil Rights Act, 42 USC §1983[2], qualquer cidadão, inclusive advogados, pode ajuizar ação diretamente contra agentes públicos ou contra o próprio Estado, quando estes violam direitos garantidos pela Constituição ou leis federais.
As emendas[3], Primeira (liberdade de expressão), Quarta (inviolabilidade de comunicações), Sexta (garantias processuais) e Décima Quarta (devido processo legal e igualdade) são os pilares que blindam a atuação dos profissionais da advocacia.
Quando um agente do Estado viola o direito de um advogado, seja cerceando sua atuação profissional, obstando acesso aos autos ou desrespeitando diretamente seu cliente, ele responde, financeiramente, pessoalmente e judicialmente.
E a resposta não é simbólica.
As condenações frequentemente ultrapassam cifras milionárias. Estados, Municípios e órgãos públicos são compelidos a ressarcir, com juros e correção, pelos atos abusivos dos seus agentes. E não para por aí: o ente público move, via “recoupment action“[4], ação regressiva contra o agente violador.
Resultado? Além da responsabilização patrimonial, o sistema cria um efeito pedagógico real, eficaz e tangível. Violar prerrogativa, lá, não é um gesto banal. É um problema financeiro sério.
3. O Cenário Brasileiro
No Brasil, a Ação Civil Pública, tradicionalmente voltada à tutela de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, já admite, sem esforço hermenêutico, sua utilização na defesa das prerrogativas da advocacia, ou seja, é o instrumento universal de proteção de direitos transindividuais.
Afinal, quando um advogado tem sua atuação profissional tolhida, o atingido não é apenas aquele indivíduo, mas toda a classe, todo o sistema de justiça, toda a sociedade.
Não existe prerrogativa individualizada; há uma função pública, essencial à administração da justiça, sendo violentada, ou seja, uma violação enquanto garantias institucionais constitucionais.
Assim, é importante vislumbrar a violação de prerrogativas como agressão direta ao patrimônio jurídico difuso da sociedade, ao livre acesso à justiça, ao contraditório, à ampla defesa e, por consequência, à própria democracia que, quando violada, trata-se inerentemente de um dano moral coletivo.
O próprio artigo 5º da Lei nº 7.347/85[5] estabelece que a OAB possui legitimidade ativa plena para o manejo da ACP na defesa de interesses difusos e coletivos, o que inclui, indiscutivelmente, as prerrogativas profissionais da advocacia, por derivação lógica e constitucional, neste sentido o próprio Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento[6].
Da mesma forma, a ACP pode ser vista com um instrumento REPARATÓRIO, PREVENTIVO e PUNITIVO, pois, uma vez institucionalizada, pode buscar indenizações por dano moral coletivo, cuja destinação poderia ser a um Fundo Nacional de defesa das Prerrogativas da advocacia, com fulcro a custear e estruturar medidas institucionais de defesa. Preventivo, na busca de firmar TACs (termos de ajuste de condutas) ou obrigações de fazer, aos agentes violadores, impondo e negociando obrigações, adoção de protocolos claros, e instalação de mecanismos internos de compliance institucional.
E por fim, o amparo Punitivo, mas como elemento pedagógico e de mudança institucional, pois, quando há condenação por dano moral coletivo há evidente imposição de mudança de protocolos.
Ou seja, o efeito sistêmico esperado com a revolução silenciosa é real, tangível e eficaz, pois o Estado começa a sentir o impacto econômico das violações, Prefeituras, governos e até órgãos começam a criar setores de compliance voltados à gestão de risco jurídico envolvendo a advocacia, as polícias, os órgãos de persecução penal, e os entes das administrações públicas passam a capacitar sistematicamente seus agentes e a prática da violação deixa de ser um desvio funcional e passa a se tornar um risco financeiro e político inaceitável.
Precedentes já existem.
O emblemático caso da ACP[7] ajuizada pelo Conselho Federal da OAB contra o Estado de Goiás, buscando não só a responsabilização do Estado, mas também medidas concretas de não repetição, em razão da violenta abordagem policial a um advogado durante exercício profissional, sinalizou que o caminho é viável, necessário e eficaz. A violação sofrida pelo Dr. Oecélio Ferreira Siveira Junior foi o estopim para se tornar ícone de ruptura institucional e estrutural.
Ademais, há precedentes exitosos nas Seccionais, como o caso da ACP[8] ajuizada pela OAB/SC contra o Estado de Santa Catarina, cujo objetivo alcançado foi de garantir à comunicação entre advogados e seus clientes reclusos, independente de horário ou de autorização do gestor da unidade prisional.
Contudo, a ausência de conscientização e de institucionalização da Ação Civil Pública como instrumento de defesa da advocacia transforma episódios inovadores em meras iniciativas isoladas. Mesmo as ações exitosas, se não forem reverberadas e incorporadas como prática institucional, tendem a ser silenciadas pelo tempo.
4. A Proposta.
Este texto propõe trazer à luz uma reflexão já apresentada. Em um caminho já pavimentado e que demonstrou ser capaz de atingir resultados, podendo elevar a discussão social e buscar êxitos ainda melhores. Uma revolução silenciosa, mas inadiável: a sistematização da Ação Civil Pública como instrumento padrão de responsabilização do Estado e de seus agentes pelas violações às prerrogativas da advocacia.
Assim, como no modelo americano, é possível a utilização das ACP tal qual nas Civil Rights Action, para buscar indenização por danos morais coletivos, quando violadas as prerrogativas da advocacia.
Além disso, é importante destacar e utilizar a ACP para promoção de responsabilização dos agentes públicos, conforme prevê e garante a norma constitucional (art. 37 §6ª da CF), não apenas garantindo a reparação pelo ato de violação das prerrogativas, mas assegurando que o tesouro público não absorva sozinho[9] a obrigação do agente, socializando a conta e normalizando a violação, perpetuando um ciclo de descaso e descumprimento.
Ou seja, o que se busca é determinar que o Estado, sob pena de cometimento de improbidade administrativa, cumpra a norma constitucional, ingressando com ação regressiva para responsabilização direta do agente infrator, nos casos de provimento das ações civil públicas. Institucionalizando a responsabilização do infrator pelos danos a que este deu causa na inobservância da lei. Tal como é de praxe no modelo americano, com personal liability.
5. Conclusão:
Ou se constrói o Estado Democrático de Direitosobre a base sólida das garantias institucionais, ou se convive com o arbítrio travestido de rotina, de costume, de cultura institucionalizada de violação.
As prerrogativas da advocacia não são favores, não são privilégios, não são deferências de classe, são cláusulas pétreas da democracia, linhas de contenção do Leviatã estatal. E sua violação não é um dano privado, nem uma ofensa episódica, é uma lesão direta ao próprio pacto civilizatório que sustenta a República.
Ao contrário do modelo norte-americano — onde a Civil Rights Action (§1983) transformou o abuso estatal em problema econômico, financeiro e orçamentário do próprio Estado, no Brasil, ainda impera uma cultura de impunidade funcional, alimentada por uma jurisprudência tímida, e um sentimento de que, ao final, ninguém pagará a conta.
Quando o Estado perceber que sua omissão na formação, fiscalização e correção de seus agentes gera impacto financeiro, orçamentário e reputacional, deixaremos de ser uma advocacia de resistência para sermos uma advocacia de transformação estrutural.
A violação de prerrogativas precisa deixar de ser um custo simbólico para se tornar um custo financeiro. Ou seja, precisa doer no caixa dos entes públicos e replicar no bolso dos violadores. Precisa ser suficiente para obrigar as instituições a treinarem seus agentes e a punirem quem ultrapassa a linha da legalidade.
Essa não é uma luta da advocacia por si mesma. É a luta da sociedade pela preservação de sua última trincheira contra o arbítrio: a advocacia livre, independente, inviolável e protegida.
[1] BRASIL. Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Resolução n. 17, de 12 de dezembro de 2023. Dispõe sobre o Registro Nacional de Violações de Prerrogativas – RNVP, nos termos do Provimento nº 179/2018. Disponível em: https://jornaldaadvocacia.oabsp.org.br/wp-content/uploads/2023/12/Resolucao-17-2023-Registro-Nacional-de-Violacoes-de-Prerrogativas-RNVP-OAB.pdf. Acesso em: 15 jun. 2025.
[2] “Every person who, under color of any statute, ordinance, regulation, custom, or usage, of any State or Territory, subjects, or causes to be subjected, any citizen of the United States or other person within the jurisdiction thereof to the deprivation of any rights, privileges, or immunities secured by the Constitution and laws, shall be liable to the party injured…” UNITED STATES. Civil Rights Act, 42 U.S. Code § 1983. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/uscode/text/42/1983. Acesso em: 15 jun. 2025.
[3] ESTADOS UNIDOS. Constituição dos Estados Unidos da América (1787). Tradução disponível em: NETO, José. História do Direito. Universidade Estadual de Londrina. Disponível em: http://www.uel.br/pessoal/jneto/gradua/historia/recdida/ConstituicaoEUARecDidaPESSOALJNETO.pdf. Acesso em: 15 jun. 2025.
[4] A Recoupment Action, no direito norte-americano, configura-se como a ação regressiva promovida pelo Estado contra seu agente, visando o ressarcimento pelos valores que foi compelido a pagar a terceiros, em razão de atos ilícitos praticados no exercício das funções públicas. Embasada no direito comum (common law), particularmente nos princípios de agency law e tort law, bem como sedimentada na jurisprudência, essa reflete a busca pela justa alocação dos encargos indenizatórios entre o ente estatal e seu agente infrator.
[5] BRASIL. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a Ação Civil Pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7347.htm. Acesso em: 15 jun. 2025.
[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.351.760/SP. Relator: Ministro Herman Benjamin. Julgado em 26 fev. 2014. Publicado em 14 mar. 2014. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Inicio. Acesso em: 15 jun. 2025.
[7] BRASIL. Justiça Federal da 1ª Região. Ação Civil Pública nº 1035115-41.2021.4.01.3500. Conselho Federal da OAB vs. Estado de Goiás. Ajuizada em 2021.
[8] BRASIL. Justiça Federal da 1ª Região. Ação Civil Pública nº 5017104-98.2020.4.04.7200. Ordem dos Advogados do Brasil vs. Estado de Santa Catariana. Ajuizada em 2020.
[9] Responsabilidade objetiva e direta do estado.