Douglas Rodrigues da Silva
“Todo advogado vive, no exercício de seu patrocínio, certos momentos em que, esquecendo as sutilezas dos códigos, os artifícios da eloquência, as astúcias do debate, já não sente a beca com que se vestiu, tampouco vê as togas com que se vestem os juízes. Fita-os nos olhos, de igual para igual, com aquelas palavras simples com que a consciência do homem se dirige fraternalmente à de seu semelhante, para convencê-lo da verdade”[i]. Assim, Piero Calamandrei sintetizou o papel essencial da sustentação oral: o olhar nos olhos de quem julga, a colocação em condição de igualdade e, no breve interregno em que se ocupa da tribuna, a apresentação das bases sobre as quais repousa a sua causa. Ou, numa definição altiloquente: “nesses momentos, a palavra justiça volta a ser fresca e nova, como se fosse dita pela primeira vez. E quem a pronuncia sente passar por sua voz um frêmito discreto e suplicante, como aquele que passa nas palavras do crente que ora”.
Lamentavelmente, a súplica por justiça tornou-se amarga e distante do frescor que imaginou o florentino. O crente pode até manter vivo o direito de orar, mas já não nutre esperanças de ver sua prece ouvida. Tal qual o advogado em sua causa, engolfado pelo desânimo e pela descrença no próprio direito de pedir e ser escutado. Ao menos, esse é o sentimento que emerge da Resolução nº 591/24 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Mais uma vez, demonstrando um injustificado temor — e uma estrepitosa agonia — diante da voz dos advogados e do exercício pleno do direito de petição, o CNJ revela-se pertinaz na tentativa de silenciar a sustentação oral. Em nova investida restritiva, o Conselho propõe alterar por completo o modelo de julgamento. Deseja transformar a sustentação oral em peça de vídeo juntada aos autos, convertendo as sessões dos Tribunais em exibições de produções audiovisuais, onde a presença física de advogados e magistrados seria uma rutilante exceção — numa excepcionalíssima exceção, com o perdão do pleonasmo.
Não é a primeira tentativa de sufocar a palavra do advogado.
Há tempos, os Tribunais Superiores têm recorrido intensamente a decisões monocráticas — muitas delas terminativas — nas quais se examina, exaustivamente, o mérito das pretensões recursais, fulminando de modo definitivo todas as questões suscitadas. A razão alegada? Efetividade e celeridade processual, permitindo à Corte superar pontos “pacíficos” ou “claramente incabíveis”. Mas talvez o real motivo fosse outro. Com a banalização do julgamento monocrático, evitavam-se os requerimentos de sustentação oral, restando ao advogado apenas a via dos agravos internos ou regimentais. Esses recursos — geralmente previstos em regimentos próprios — não contemplavam, até recentemente, a sustentação oral, resultando em julgamentos sem participação ativa dos causídicos. Em muitos casos, sequer eram levados a sessões presenciais, permanecendo restritos ao julgamento virtual, em que o debate inexiste e as decisões são apenas lançadas no sistema processual — uma atividade mecânica, dissociada de qualquer processo justo ou dialógico.
Não fosse a atuação firme da OAB, e o intenso périplo até a promulgação da Lei nº 14.365/2022, o estrangulamento do direito à sustentação oral teria se concretizado em morte definitiva.
Mas nada dilacera mais do que a angústia da morte iminente — a consciência inelutável de seu próprio fim. E esse parece ser o sentimento comumente incutido nos advogados ao descobrirem que o direito à sustentação oral voltou à pauta do CNJ. Em mais um round de sua renhida luta contra o direito de o advogado ser ouvido, o Conselho Nacional de Justiça quer transformar todos os julgamentos em verdadeiros festivais de curtas-metragens.
A partir da falácia de que a sustentação não seria afetada, mas apenas teria seu formato alterado para vídeo, o CNJ quer nos fazer crer que falar diante de uma câmera, sem qualquer contato com os julgadores, é tão eficiente quanto a sustentação oral presencial. Alega-se que todos assistiriam, pacientemente, a horas de vídeos — em sua maioria amadores e com estrutura precária — com o mesmo grau de atenção exigido em sessões presenciais. Apesar das inúmeras possibilidades de distração, assegura-se que os vídeos serão minudentemente vistos, percebidos e analisados, sem qualquer desvio de foco. Nenhum vídeo provocaria bocejos antes mesmo de ser reproduzido. Ao menos é o que afirmam. Mas há máscaras que não podem ser retiradas sem arrancar a pele de quem as usa.
Vídeo não é sustentação oral. Há vezes em que o óbvio precisa ser dito.
Se os Tribunais padecem de excesso de recursos ou de processos, isso não deve ser ônus do cidadão — tampouco da advocacia. Problemas estruturais não justificam a supressão de direitos. Que se ampliem os Tribunais, que se criem cargos, que se racionalize a uniformização do direito. O Estado-juiz não pode valer-se de sua ineficiência para tolher direitos consagrados na Constituição, especialmente quando esta consagra a advocacia como função essencial à Justiça. E não há justiça onde o advogado é silenciado.
Além disso, transformar a produção de vídeos em regra processual gera diversos outros problemas. O acesso à Justiça, por exemplo, terá seu custo elevado, acirrando desigualdades. Escritórios maiores, com mais recursos e estrutura, poderão produzir vídeos mais sofisticados e chamativos. Escritórios menores, provavelmente, editarão seus vídeos em celulares, tentando capturar a atenção dos julgadores com recursos modestos. Seria um evento cinematográfico em que Hollywood dividiria espaço com filmes caseiros e mal editados.
E mais: os julgamentos se tornam estéreis, destituídos de debate. A força da sustentação oral está justamente na possibilidade de transformar pontos aparentemente irrelevantes em questões essenciais, clamando por um exame mais atilado. A experiência está repleta de casos vencidos nos minutos finais da exposição, muitas vezes pela dúvida semeada num julgador. Uma dúvida individual pode tornar-se coletiva, permitindo uma reflexão compartilhada. Essa é, aliás, a grande magia do colegiado — um tônico que dá coragem para remar contra a corrente. Como se diz: quando o vento sopra forte, é melhor não estar sozinho, é sempre bom ter alguém a quem dar a mão durante a tormenta. Eis a força motriz da sustentação oral.
Talvez o CNJ precise recordar um ensinamento primordial, há muito formulado por Charles Chaplin: “O cinema é uma arte que imita a vida; o teatro é a própria vida em cena”. Creio não ser preciso gastar mais tinta para explicar por que um vídeo jamais poderá se equiparar à sustentação oral.
[i] CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 09.
Douglas Rodrigues da Silva: Mestre em Direito (UNICURITIBA). especialista em Direito e Processo Penal (UNICURITIBA). Bacharel em Direito (UNICURITIBA). Advogado Criminal. Professor na pós-graduação da Escola Paranaense de Direito. Diretor Executivo da Comissão de Educação Jurídica (2025-2027). Diretor Executivo da Comissão de Defesa das Prerrogativas (2025-2027). Associado ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE).