O Corpo Feminino como Território de Controle: Uma Análise da Resolução nº 05/2025 do TJMT e Suas Implicações para a Advocacia Feminina

Historicamente, a vestimenta feminina foi imposta por rígidas normas sociais e culturais, frequentemente determinadas por uma estrutura patriarcal. Por longos anos, a autonomia das mulheres sobre o que podiam vestir foi severamente limitada, refletindo um controle social e moral sobre sua imagem e corpo. Considerava-se justo restringir a liberdade de expressão da mulher em prol de uma “decência” feminina que não constrangesse os homens.

Em abril de 2025, o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso (TJMT) publicou a Resolução TJMT/OE nº 05/2025, a qual estabelece um padrão de vestimenta para acesso aos fóruns e prédios do Poder Judiciário. No entanto, ao fixar padrões de indumentária que recaem, em sua imensa maioria, sobre roupas utilizadas predominantemente por mulheres, a resolução revela-se menos neutra do que aparenta, operando como instrumento simbólico e atual de controle sobre o corpo feminino.

Sob o pretexto de assegurar o decoro e a formalidade no ambiente judiciário, esta Resolução ataca as mulheres no geral e viola as prerrogativas profissionais das Advogadas, perpetuando um ciclo de exclusão e silenciamento que há muito lutamos para extinguir. E, embora possa parecer inócua à primeira vista, sua redação e aplicação revelam um viés de gênero que penaliza desproporcionalmente as mulheres. Ao estabelecer critérios subjetivos e, por vezes, ambíguos sobre o que constitui “adequação” e “decoro”, a norma abre margem para a interpretação e a fiscalização do corpo feminino. Termos como “decência”, “sobriedade” e “discrição”, quando aplicados à vestimenta feminina, são carregados de estigmas sociais e culturais que, há muitos anos, têm limitado a autonomia da mulher sobre sua própria imagem.

A imposição de códigos de vestimenta é parte de um repertório histórico de regulação dos corpos femininos e que reflete estruturas de poder e dominação. No contexto da norma em análise, a proibição de blusas de alças, decotes e saias abaixo de determinado comprimento implica, na prática, constranger e penalizar a expressão corporal feminina que se distancia do molde “sóbrio” entendido pelos homens que compõe o Judiciário.

Essa normatização da aparência traduz um exercício de biopoder: ao disciplinar o modo de vestir, o Tribunal exerce controle simbólico, delineando quem pode ou não “pertencer” ao espaço judiciário. A mensagem subjacente é clara: a mulher que não cumpre o código “excede-se” e, assim, compromete a seriedade do ambiente. Dessa forma, não se trata apenas de uma questão funcional de identificação ou decoro, mas de sancionar práticas corporais que escapam ao padrão masculino hegemônico.

O Estatuto da Advocacia (Lei n.º 8.906/1994) confere aos advogados e advogadas prerrogativas destinadas a garantir o livre exercício da profissão e a preservação de sua função essencial à administração da Justiça, dentre elas destaca-se o direito ao livre ingresso em órgãos públicos, previsto em seuart. 7º, inciso VI.

Destarte, ao exigir peças específicas e classificar como “inadequadas” roupas comuns ao vestuário feminino, o TJMT interfere indevidamente nessa liberdade. A prerrogativa de livre acesso e de livre exercício da profissão é cerceada quando o corpo da mulher advogada se torna um obstáculo ou um alvo de julgamento.

Além disso, ao disciplinar de forma mais gravosa a indumentária feminina, a Resolução acaba por penalizar as advogadas, as quais terão muito mais restrições para acessar à justiça do que seus pares do sexo masculino, reforçando estereótipos de gênero e contribuindo para a objetificação da mulher no ambiente de trabalho, contrariando o princípio da igualdade de gênero.

Não obstante, a vontade de disciplinar o corpo das mulheres é tão grande, que o Tribunal passou por cima de Lei Federal, ignorando que, conforme dispõe o inciso I, do art. 58 do Estatuto da Advocacia e da OAB, somente a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) poderia normatizar o vestuário de seus inscritos – conforme, inclusive, reconhecido por decisão liminar que suspendeu parcialmente a aplicação do código em razão de ofício da OAB-MT.

A confecção da – agora suspensa – Resolução TJMT/OE nº 05/2025 demonstra, de forma bastante explícita, a dominação masculina na sociedade em que vivemos, cujo sistema, apesar de empreender esforços, não consegue destituir, e isso reforça a necessidade de avançarmos em análises que possam servir para impulsionar mudanças qualitativas profundas no padrão de resposta do sistema de justiça para mulheres[1], desde as que precisam do judiciário, até as que operam o judiciário.

Não se pode olvidar que as relações de gênero no Brasil são marcadas por desigualdades sociais, culturais, econômicas e políticas que, ao longo dos anos, criou um ambiente fértil para que homens reproduzam ações que reafirmam o intuito de dominação sobre as mulheres. Não é à toa que a resolução busca, de forma nua e crua, ditar regras de como uma mulher deve se vestir para acessar as dependências do Poder Judiciário. Ocorre que, não bastasse toda a problemática que envolve o livre arbítrio e liberdade de expressão da mulher – que deve ser livre para vestir-se como bem entender -, as regras impostas na resolução escancaram a disparidade de gênero e violam o livre acesso à justiça.

O artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, preceitua que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”. Significa dizer que, portanto, todos têm o direito de acesso à justiça – e naturalmente adentrar em suas dependências. No entanto, referida garantia constitucional é usurpada diante da limitação de entrada por vestimentas tidas como inadequadas ao órgão.

É preciso reconhecer que normas de vestimenta redigidas sem critérios objetivos, visando apenas a imposição de padrões arcaicos e obsoletos, usualmente fundamentadas em um suposto decoro, quando desconsideram a igualdade de gênero, apenas reproduzem estereótipos e importam modelos culturais restritivos. Para além disso, ao considerarmos que 90% das restrições impostas dizem respeito às vestimentas femininas, a resolução do TJMT torna a “justiça” um espaço – ainda mais – excludente.

Repensar os padrões comportamentais e reiterados que, propositadamente – ou não –, discriminam e estigmatizam as mulheres sob um pretexto de ordem comum é imprescindível. Uma suposta forma não pode prevalecer sobre o direito que tanto se luta para defender. É urgente estabelecer mudanças na cultura que sustenta a dominação masculina em nossa sociedade. Eis que, nessa lógica, o próprio direito figura como um fator de discriminação[2].

Enquanto a maneira de se vestir for um critério de permissão da presença da mulher no Tribunal, restará comprometido todo o ideal de uma justiça acessível e inclusiva. O que se espera de todos, em especial, da justiça brasileira, é que para além dos discursos, campanhas e inovações, a mulher encontre seu lugar de igualdade, autonomia, liberdade e respeito que, por ora, segue apenas no papel. Ou melhor, nem mesmo no papel.

Artigo produzido por meio da Diretoria das Prerrogativas das Mulheres, da Comissão de Defesa das Prerrogativas Profissionais da Seccional da OAB/PR.

AUTORAS: THAYNÁ DOS SANTOS LOPES[3] e ANA CAROLINE MONTANINI[4]

COORDENAÇÃO: FRANCIELLE SCHEFFER DOS SANTOS[5]

REVISÃO: BARBARA MOSTACHIO FERRASSIOLI[6]


[1] SEVERI, Fabiana Cristina. O gênero da justiça e a problemática da efetivação dos direitos humanos das mulheres. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, 2016, p. 82.

[2] BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; BONATTO, M.; FACHIN, Melina Girardi. Constitucionalismo Feminista para Ler e Interpretar o Direito (Constitucional) com lentes de gênero. Revista CNJ, v. ago 2022, p. 215.

[3] Advogada criminalista. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito e Processo Penal pela ABDConst. Membra relatora das Comissões de Defesa das Prerrogativas Profissionais e de Defesa dos Direitos Humanos da OAB/PR. Tutora do Projeto de Extensão “Refúgio, Migrações e Hospitalidade” da UFPR. Integrante do Núcleo de Estudos sobre Internacionalização do Poder Punitivo (NEIPP/UFPR).

[4] Advogada criminalista, graduada pelo Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba), pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), pós-graduanda em Tribunal do Júri pelo CEI. Representante Estadual na Comissão Nacional da Jovem Advocacia pela ABRACRIM. Secretária-adjunta da comissão de prerrogativas profissionais da OAB/PR

[5] Advogada nas áreas Cível e Processo Civil. Diretora das Prerrogativas das Mulheres da Comissão de Defesa das Prerrogativas Profissionais da OAB/PR. Pós-graduada em Advocacia Cível pela ESA. Mestranda em Tecnologia e Sociedade. Integrante do Grupo NBRACI (Núcleo de Estudos Étnico-Raciais) da UTFPR. Presidente da ONG Voluntariando.

[6] Advogada criminalista. Presidente da Comissão de Defesa das Prerrogativas Profissionais da Seccional da OAB/PR. Mestranda em Direito pela UFPR. Pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal.